“Sem deuses, sem demônios, sem budas e seres,
Sem eu, sem objetos, sem agressores, nada para ser prejudicado.”
(Troma Sadhana)
Em alguma caverna úmida e fria, onde você está exposto a perigos que poderiam acabar com sua vida sem avisar... o som de um tambor e uma melodia rítmica podem trazer à tona as fraquezas que você não conhecia... e seus medos mais profundos. A dança da vida e da morte, em constante diálogo, aparecem de forma calma e ameaçadora. Não há diferenças de status, nem fama ou prestígio. Estamos sozinhos e tudo o que fomos, somos e seremos está presente no mesmo momento.
E a impermanência, da qual constantemente tentamos fugir, vem na forma de uma divindade ou de um demônio... ou de ambos. De repente, a impermanência transforma-se numa forte invocação que se enraíza nas nossas entranhas, que se exterioriza desintegrando tudo o que era a nossa verdade e onde verdadeiramente o espírito se nutre, se alegra e se empodera. Tornamo-nos parte da morte que acontece repetidas vezes em um ciclo tedioso e constante. E no momento mais sombrio, de algum lugar profundo, surge uma claridade.
As palavras acima não definem exatamente uma prática Chöd, mas descrevem, de maneira geral, a experiência que pode resultar de sua prática. Como veremos, para muitos, o foco dos rituais Chöd é a iluminação, mas para outros é uma forma de lidar com diferentes realidades espirituais, bem como com os espíritos dos mortos. Superficialmente poderíamos dizer que ambos os propósitos são inconciliáveis, mas na verdade se investigarmos sobre as origens da prática de Chöd bem como a concepção filosófica que a impregna, veremos que o Chöd, em sua própria essência, contém esses dois propósitos e muito mais.
Durante minha pesquisa para este artigo me vi lendo vários trabalhos acadêmicos e artigos sobre o assunto, bem como sadhanas (liturgias), e devo confessar que durante vários dias me vi perdida em meio a tudo isso. A maior parte do material disponível sobre este assunto é de origem budista e isso, de certa forma, constitui um problema a ser enfrentado, pois se ficássemos limitados a este material estaríamos considerando apenas um aspecto ou interpretação do que constitui um ritual Chöd . Então, minha tarefa era focar em encontrar outras fontes, outras visões. Quando as encontrei eram muito poucas e pouco profundas, mas mesmo assim me deram elementos que eu poderia tentar ler nas entrelinhas, sobre a possibilidade da existência da prática fora das concepções budistas ou Bön-po.
Todas as discussões sobre a prática de Chöd têm como ponto de partida sua origem geográfica e o desenvolvimento de sua linhagem. Na verdade, esses elementos são essenciais para definir o que é um ritual Chöd e sua finalidade. Do meu ponto de vista, a prática de Chöd é uma poderosa técnica de meditação e transe, composta por diversos elementos que poderiam ser considerados xamânicos e cujo objetivo é provocar uma transformação na qualidade reativa da mente. Esse propósito é alcançado através de uma espécie de viagem a outras realidades que convivem conosco e onde todo o tipo de entidades espirituais, incluindo os espíritos dos falecidos, se alimentam do nosso próprio corpo.
Origens
A palavra Chöd, ou Gcod, significa "cortar", mas também significa "servir". De acordo com isso, vemos que abrange os dois efeitos básicos que descrevem o ritual. A pesquisadora Janet Gyatso, em seu excelente trabalho "O Desenvolvimento da Tradição Gcod" fala sobre os elementos xamânicos intrínsecos da prática mas, ao mesmo tempo, adverte que não se pode subestimar a grande importância que as doutrinas budistas, especialmente a Mahayana [1] e a Vajrayana [2], tiveram no desenvolvimento e evolução da prática. (GYATSO, 1985) Até agora, quase todos os estudiosos acreditam que a prática budista de Chöd se originou na Índia.
Esta prática apresenta-se como um método muito antigo que passou por uma importante evolução ao longo de sua história, que o fez se adaptar a diferentes épocas, culturas e modos de viver, constituindo no processo uma linhagem ininterrupta até os dias de hoje. Importa também aqui ponderar que esta evolução é de certa forma pautada e marcada por uma forte presença feminina, que se inicia com a figura proeminente de Machig Labdron, de quem falaremos mais adiante.
Quando procuramos fontes para traçar a origem e as raízes da prática do Chöd, encontramos o problema de saber se é uma prática essencialmente derivada dos sutras, dos tantras ou de ambos. Também há questionamentos sobre se o Chöd é uma prática eminentemente budista, se é fortemente influenciada pelas doutrinas Bön-po ou, talvez, se é uma prática essencialmente xamânica. A fonte mais antiga que situa a prática de Chöd em terras hindus é um poema composto pelo brâmane Aryadeva [3] chamado O Grande Poema, que parece ser uma prova consistente de que no século X d.C esse ritual já era uma prática bem estabelecida na Índia.
Parece que esta prática de Chöd foi levada para as terras tibetanas por Pa Dampa Samgye [4]. Dampa chamou seu método de "A Pacificação do Sofrimento" e constitui o chamado "caminho dos Sutras". Segundo Jerome Edou, Dampa o transmitiu a Sonam Lama [5] e parece que este último seria quem finalmente o teria passado a Machig Labdron. Outros dizem que teria sido o próprio Dampa que o teria passado para Machig. As discrepâncias entre os especialistas derivam de que os textos da própria Labdron alimentam essas dúvidas.
Mas quem foi Machig Labdron e por que ela é considerada a grande sistematizadora da prática de Chöd? Machig nasceu no Tibete e viveu entre a última metade do século XI d.C e a primeira metade do século XII d.C. Em sua biografia encontramos elementos que muitas vezes nos levam a questionar se estamos falando de uma mulher ou de uma divindade. Machig, por causa de sua prática, realização e herança, é atualmente considerada uma dakini [6].
Em algumas histórias, onde Machig aparece de forma mais divinizada, podemos ler elementos que combinam sua história com a de Tara [7]. Diz-se que Tara era uma princesa completamente dedicada às suas práticas espirituais demonstrando grande progresso. Por causa disso, alguns monges recomendaram que ela usasse os siddhis (realizações) que ela havia alcançado, bem como seu mérito, para conseguir um renascimento no corpo de um homem para alcançar a iluminação. A isso Tara respondeu que não havia realidade intrínseca no corpo de um homem ou de uma mulher, que somente as mentes ignorantes insistiam nisso. Assim, ela fez o voto de retornar uma e inúmeras vezes no corpo de uma mulher, como um bodhisatva, até que não houvesse nenhum ser sujeito ao sofrimento samsárico [8].
De maneira semelhante, algumas fontes apontam que Machig foi em sua vida anterior uma praticante do sexo masculino que jurou retornar em um corpo feminino, para dar uma nova perspectiva à prática de Chöd. O que realmente sabemos é que Machig, em algum momento, deixou a vida que tinha e começou a viajar para diferentes lugares, para praticar em cavernas e lugares inóspitos. Ela recebeu iniciações de vários professores e em várias linhas. Parece que ela também conhecia muito bem algumas práticas Bön-Po por causa de sua origem familiar.
Assim, temos que as linhagens da prática do Chöd podem ser agrupadas em três categorias: as linhagens do Sutra, as do Tantra e as que combinam Sutra e Tantra. O sistema Chöd ensinado e divulgado por Machig combina a linhagem do tantra junto com os Prajnaparamita [9] Sutras e o cultivo dos Seis Paramitas que são: Dana Paramita (generosidade), Sila Paramita (virtude, conduta adequada, disciplina); Ksanti Paramita (paciencia, tolerância, resistência); Vyria Paramita (diligência, esforço); Dhyana Paramita (concentração, contemplação, Prajna Paramita (sabedoria).
Assim Machig sistematizou a prática de Chöd, sendo a iniciadora de uma linhagem que é bem conhecida hoje, que combina os ensinamentos dos Sutras e dos Tantras e é chamada de "Mahamudra Chöd. " Alguns estudiosos acreditam que as linhagens do Tantra também derivam de Machig e correspondem a alguns ensinamentos que ela deu a alguns adeptos em particular. A linhagem do Sutra deriva de Pa Dampa Samgye.
Diante disso podemos nos perguntar se a prática do Chöd se refere apenas às suas origens hindus ou se existiu também entre os Bön-Po. Antes de abordar esta questão é importante referir que quando nos referimos ao Bön-Po, não estamos a pensar num movimento unificado e homogéneo e sim de fases, que provavelmente coexistem, de alguma forma, simultaneamente até o dia de hoje. Assim temos o Bön Primitivo que compreende as tradições folclóricas do Tibete e que alguns autores chamam de "a religião sem nome".
A seguir, temos o Yungdrung ou Bön Eterno, que foi fundado pelo Buda Tonpa Shenrab ou também conhecido como Guru Shenrab. Segundo autor Iñaki Preciado, Tonpa significa “grande mestre” e Shenrab, “xamã supremo”. (PRECIADO, 2002). Ele é o fundador do Yungdrung Bön. Esta linha compartilha muitas semelhanças com o Budismo, mas seus seguidores se esforçam em mostrar que é algo completamente separado e diferente do próprio Budismo.
E, finalmente, temos o Novo Bön que surge aproximadamente entre os séculos XVI d.C e XVII d.C e que é uma espécie de amálgama entre o Yungdrung e a Escola Nyigma, que é a tradição mais antiga do Budismo tibetano. Os nyigmapa dizem que sua tradição foi fundada diretamente pelo próprio Padmasambhava. Guru Rinpoche , Padma Jugne, são outros dos tantos nomes com que se conhece a Padmasambhava, “O Nascido do Lótus”. Ele foi um grande mago, iogue e praticante tântrico; e foi quem introduziu o Budismo Tântrico no Tibete.
O pesquisador Alejandro Chaoul afirma que o Bön-po tinha uma tradição forte e arraigada da prática de Chöd e que seus seguidores estavam acostumados com ela. Para eles as práticas do Chöd são divididas em três grupos, a saber: Chöd Pacífico, Chöd Estendido e Chöd Poderoso; e o novo Bön adiciona o chamado Chöd Irado. Muitas sadhanas de Chöd já existiam na tradição Bön e o mesmo Chaoul diz que, por volta do século XIV, a sadhana conhecida como Chöd das Viajantes do Céu (Chöd das Skygoers), uma das sadhanas de Chöd mais populares, era muito conhecida entre os Bön-po. (CHAOUL, 2007)
Embora existam vários textos rituais práticos e liturgias de Chöd entre a tradição Bön-po, a fonte desses rituais seria o Tantra Mãe [10], que é considerado a fonte dos três primeiros grupos de Chöd mencionados acima. O Tantra Mãe é um composto de vários tantras e é também conhecido como Yogini Tantra. Eles se concentram na ideia de que a mente iluminada pode ser alcançada por meio do cultivo de uma mente pura, e que o desejo também é um caminho para a iluminação. Assim, o praticante tântrico deve cultivar a devoção em sua prática diária. Desta forma, todas as circunstâncias da vida podem ser transformadas em uma fonte de devoção.
Em relação ao que foi dito acima, Gyatso afirma que:
Finalmente, os Bön-po têm vários ciclos de Gcod que parecem derivar em grande parte da transmissão visionária e que foram classificados em quatro tipos correspondentes às quatro atividades tântricas: pacífico, extenso, poderoso e irado. (GYATSO, 1985, p. 340)
Chöd como prática necromântica e xamânica
Para várias tradições, as montanhas são consideradas a morada de espíritos hostis e também estão relacionadas à morte. Por exemplo, os maias e os náuatles, duas das mais importantes culturas que floresceram nas terras mesoamericanas, consideravam que as montanhas eram a morada dos deuses do submundo e seus mensageiros. Em vários rituais, quando os sacerdotes queriam invocar seus ancestrais, eles cobriam seus corpos com uma espécie de unguento preto feito de uma mistura de ervas, cinzas e sangue animal.
O ritual podia ser realizado em templos ou em locais de difícil acesso como montanhas ou florestas, e sangravam seus próprios corpos em locais específicos (principalmente nos órgãos sexuais ou na língua) como oferenda aos espíritos que ali habitavam, bem como para alimentar seus próprios ancestrais. Junto com isso, eles usavam canções e invocações.
No Tibete, as montanhas também estavam ligadas à morte e também eram consideradas a morada de espíritos irados. Em certas épocas, era costume levar os corpos das pessoas que morriam e deixá-los nas montanhas, onde certas aves e animais se alimentavam. A esse respeito seria interessante acrescentar que as dakinis, - que eram consideradas demônios carnívoros e bebedores de sangue a serviço de deusas como Kali [11] -, encontravam-se em lugares montanhosos onde havia corpos em todos os estados de decomposição.
Quando as dakinis foram incorporados às práticas budistas, especialmente no budismo tântrico, passaram a ter a função de serem a manifestação da sabedoria primordial, as guias dos praticantes e as responsáveis por dar as iniciações mais importantes. Mas, se olharmos com atenção para a sua iconografia e representação, veremos que não perderam as suas características e ferocidade anteriores, com a diferença de que agora tudo isto está direccionado para uma finalidade diferente: a iluminação. A prática de Chöd é presidida pela Dakini Troma Nagmo (manifestação irada da deusa Vajravarahi).
Troma Nagmo (Krodha Kali) é representada e visualizada com seu corpo em preto ou azul bem escuro, com aspecto irado e feroz e em posição de dança sobre um cadáver. Algumas fontes a consideram a sincretização tibetana da deusa Kali. Troma é também conhecida como a "Mãe Negra Irada". Ela representa a corporificação feminina da sabedoria e sua prática é um dos mais grandes tesouros do Budismo Vajrayana.
Assim, o Chöd era tradicionalmente praticado em cemitérios ou locais de cremação, em montanhas e lugares de difícil acesso ou no meio das florestas e, segundo Alexandra David-Neel , também em locais assombrados ligados a histórias trágicas que aconteceram recentemente. A razão disso era a energia dos espíritos e de todos os tipos de seres que ali habitam (DAVID-NEEL, 1937). Nesses lugares, o praticante (Chöd-pa) se vê no meio de tudo que pode perturbá-lo e apavorá-lo. Ele enfrenta os efeitos visíveis da impermanência: decadência e morte. Mas também, por meio desse ritual, ele pode perceber a vida em toda a sua extensão e a impermanência da própria morte.
Namkhai Norbu descreve os praticantes de Chöd da seguinte forma:
Os praticantes de Chöd são tradicionalmente nômades, viajando continuamente de um lugar para outro com um mínimo de posses, como médicos, muitas vezes carregando nada mais do que os instrumentos rituais de um damaru ou tambor de dois lados, um sino e uma trombeta óssea de coxa, e vivendo em uma pequena tenda armada usando um tridente ritual (katvanga) como seu mastro e quatro punhais rituais (phurba) como suas estacas. A prática é realizada principalmente em lugares solitários e desolados, como cavernas e picos de montanhas, mas particularmente em cemitérios à noite, quando a energia aterrorizante de tais lugares serve para intensificar as sensações do praticante que, sentado sozinho no escuro, convoca todos aqueles a quem ele tem uma dívida cármica para vir e receber o pagamento na forma da oferenda de seu corpo. Entre os convidados estão Budas e seres iluminados, para quem o praticante transforma mentalmente a oferenda em néctar, e todos os seres dos seis estados de existência cíclica condicionada (samsara), para quem a oferenda é multiplicada e transformada no que for de mais benéfico e agradável, mas também são convocados demônios e espíritos malignos a quem o próprio corpo é oferecido. (NORBU, 2000, p. 51-52)
Como vemos, de acordo com Namkhai Norbu, a prática do Chöd era realizada por pessoas de estilo de vida errante, por iogues, místicos e viajantes. Dampa Sangye e Machig Labdron não foram exceções. Mas, progressivamente, a prática de Chöd foi confinada aos mosteiros, geralmente praticada por lamas que não olham com bons olhos para aqueles eremitas errantes ou aqueles que trabalham com espíritos e usam esses rituais para realizar exorcismos ou para se comunicar com os mortos.
Seria interessante ler a descrição que Alexandra David-Neel, como uma das primeiras cronistas e fascinada pela Magia das montanhas tibetanas, deu sobre a prática do Chöd:
A razão dessa preferência é que o efeito de Chöd, ou ritos afins, não depende apenas dos sentimentos despertados na mente do celebrante pelas severas palavras da liturgia, nem do ambiente inspirador. Ele também é projetado para despertar as forças ocultas, ou os seres conscientes que – de acordo com os tibetanos – podem existir em tais lugares, tendo sido enervados por ações reais ou pela concentração dos pensamentos de muitas pessoas em eventos imaginários. (DAVID-NEEL, 1937, p. 92)
David-Neel manifesta que esse ritual não causa efeitos apenas em quem o pratica, mas também no ambiente, porque as energias presentes nos locais encontram uma forma de manifestação. Por outro lado, o estudioso Giussepe Tucci ao descrever os elementos que eram usados nos rituais diz que em alguns casos usavam ossos humanos, um pequeno sino e pele de animal selvagem com garras intactas para subjugar os demônios. (TUCCI, 1980)
Em alguns rituais, a phurba (punhal ritualístico) também é usado para direcionar a energia ou subjugar. Os elementos utilizados no ritual são basicamente aqueles capazes de produzir um determinado tipo específico de som, pois se diz que o som do sino e do damaru por exemplo, pode atingir e penetrar todos os reinos. Eles também têm a função de invocação, orientação e prece ao mesmo tempo. Observamos também que não basta só com realizar o ritual em um local que de alguma forma tenha vínculo com a morte, como também muitos dos instrumentos rituais representam a morte em si. De certa forma, se não estivéssemos em um local vinculado ao falecido, a presença desses instrumentos já seria suficiente para que o ritual fosse efetivo.
A seguir, esse mesmo autor descreve as fases que ocorrem no ritual. A primeira fase é chamada de "compartilhamento branco". Nesta fase, o corpo físico do praticante é concebido como transformado em néctar que é oferecido às chamadas "Três Jóias" (Buda, Dharma e Sanga). A próxima fase é chamada de "partilha multicolorida", aqui o corpo é transformado em elementos tais como alimentos, roupas, joias ou todo tipo de objetos que são desejáveis aos chamados Protetores [12] .
Depois, há uma terceira fase chamada "compartilhamento vermelho". Aqui, a carne e o sangue do praticante são concebidos como se dispersando pelo espaço para servir de alimento para seres demoníacos de todos os tipos. Assim, após o término dessa etapa, a seguinte é conhecida como “compartilhamento negro”. Nesta fase imaginamos que todas as nossas faltas, tudo o que é considerado errado ou obstáculo à iluminação, são absorvidos pelo nosso próprio corpo e assim, nosso corpo é oferecido a todos aqueles seres que estão passando por intenso sofrimento e também para seres iluminados. É importante esclarecer aqui que Tucci está basicamente descrevendo o ritual das linhagens fundadas por Machig Labdron, que é o Chöd budista. (TUCCI, 1980)
Mas quando dizemos que a prática de Chöd é direcionada a fazer uma espécie de corte, estamos nos referindo a um corte ou quebra com o quê? É romper com a influência dos Quatro Maras. Esses quatro maras são conhecidos como: Mara Substancial, Mara Insubstancial, Mara da Alegria Inebriante e o mara que é a raiz dos três Maras mencionados anteriormente, conhecido como o Mara do Apego ao Ser.
Esses Quatro Maras são o que Machig Labdron se refere quando fala sobre os "Quatro Demônios". Para ela, um demônio é tudo o que pode significar um obstáculo em nosso caminho espiritual. Portanto, não apenas circunstâncias terríveis podem ser demônios, mas também um amigo, diz Machig, pode se tornar num demônio em certas circunstâncias. A existência desses demônios, segundo ela, depende exclusivamente de como nossa mente os vivência e os compreende.
Sempre que nossa mente estiver apenas reagindo às circunstâncias, encarando o ambiente com apego ou aversão, estaremos em uma situação em que queremos nos agarrar aquilo que gostamos e fugimos daquilo que não queremos. Em ambos os casos, o sentimento resultante é o medo e estamos constantemente criando diferentes tipos de demônios. Então, diz Labdron, esses demônios tomam forma no nosso dia a dia por meio de doenças, acontecimentos desagradáveis, depressão, ansiedade, entre outros. Então podemos dizer que a prática do Chöd é direcionada a “cortar” com o hábito reativo de nossa mente.
O Mara Substancial refere-se a como percebemos e como nos relacionamos com os objetos externos. É a nossa percepção cognitiva. Quando percebemos um objeto, por exemplo, temos imediatamente uma experiência de prazer ou rejeição. Quer experimentemos prazer ou aflição, isso nos liga às emoções que resultam da experiência.
Por outro lado, o Mara Insubstancial ocorre independentemente da presença ou ausência de uma determinada condição externa. Não se refere a uma reação que temos a algo, mas se refere aos chamados kleshas (apego, aversão, perplexidade, orgulho e ciúme). Surgem na mente espontaneamente e estão sempre presentes, latentes, em maior ou menor grau. A partir desses kleshas vem o acúmulo de karma [13] e eles são, portanto, a fonte de todo sofrimento.
Mas, por outro lado, se vivemos uma vida relaxada, sentindo que temos absolutamente tudo, tendo a ilusão de que nada pode ser melhor, ou se como praticantes espirituais alcançamos conquistas (siddhis) como clarividência, por exemplo, ou um alto reconhecimento por aquilo que fazemos, e ficarmos fixos nisto, não teremos uma verdadeira inspiração para continuar nossa prática, e teremos a ilusão de que já alcançamos tudo, chegando a sentir um sentimento superioridade na frente dos outros.
Essas conquistas estão apenas provando que nossas práticas estão dando resultados, mas provavelmente estamos longe de atingir o siddhi supremo (iluminação ou estado mental Vajra). Este mara é chamado de Mara da Alegria Inebriante. Aqui o problema não é que tenhamos fama ou riqueza e uma vida cheia de prazeres, mas na forma como nossa mente os percebe e vivencia.
Finalmente, o Mara do Apego é apresentado nestes ensinamentos como a raiz dos três maras anteriores. Quando nos apegamos ao nosso próprio ser, à nossa própria experiência de vida, nos ligamos a experiências como habilidades que possuímos, ou a um determinado aspecto físico ou a um estilo de vida e vivemos apenas voltados para isso, estamos gerando uma grande fonte de sofrimento, pois perderemos tudo isso irremediavelmente.
Agora, vamos prestar atenção na definição de Chöd que segue:
Chöd é uma prática que combina a meditação budista com o antigo ritual xamânico tibetano-siberiano. A "liturgia" de Chöd é cantada com acompanhamento de tambor, sino e trompa de fêmur. (DHARMA FELLOWSHIP, p. 1)
Esta definição menciona basicamente todos os elementos de que falamos até agora, mas acrescenta algo importante: o fato de que Chöd é uma prática que combina elementos budistas com rituais xamânicos tibetano-siberianos. De certa forma e como vimos, essa definição deixaria de fora as práticas Chöd do Bön-po, pois até o momento não há evidências claras de um cruzamento entre o Bön-po e as técnicas budistas no que diz respeito aos rituais Chöd.
Mas o que nos interessa nesta definição é o componente xamânico mencionado e aqui seria interessante fazer uma observação: não estamos nos referindo a se os praticantes de Chöd são xamãs, ou se foram os xamãs que criaram a prática de Chöd, estamos nos referindo a se a prática Chöd é uma experiência xamânica. A esse respeito, se tivermos em mente o que diz o antropólogo Brian Morris: "o xamã é visto como existindo em dois mundos: no mundo comum da vida cotidiana e no mundo oculto dos espíritos em que entra durante um estado de transe." (MORRIS, 2006, p. 18), podemos considerar que Chöd é uma experiência essencialmente xamânica e necromântica.
Ele então esclarece que esses dois mundos ou "duas realidades" são a realidade material, que seria nossa experiência de vida material e física, e a realidade espiritual, que seria onde habitam os espíritos, as almas dos mortos assim como divindades e outros seres. Morris explica que um ritual xamânico inclui canto, percussão, experiências visionárias e atividades que induzem ao êxtase. Mas ele rapidamente aponta que o uso de plantas ou substâncias psicodélicas não é fator determinante em um ritual xamânico e pode ou não estar presente. (MORRIS, 2006)
Embora o fato de atingir um estado alterado de consciência seja um fator determinante para uma experiência xamânica, estas não dependem exclusivamente de substâncias psicodélicas. Desta forma, circunstâncias como isolamento em lugares remotos como montanhas ou florestas, jejum, uma dança frenética, até mesmo a presença de elementos externos que intensificam os sentimentos do praticante ou certos estados meditativos, podem levar a estados de transe profundo.
Para concluir, como vimos, a prática do Chöd sofreu uma importante evolução desde suas origens até hoje. Devemos nos despojar da abordagem reducionista de pensar que a prática autêntica do Chöd é aquela realizada pelos iniciados em um mosteiro ou templo, sem considerar o praticante solitário. Também é um erro acreditar que ter como meta a iluminação deve se opor à interpretação animista ou xamânica da realidade e de nosso caminho espiritual.
A prática do Chöd, seja de origem budista ou de influência Bön, é fruto das vivências e dedicação de eremitas, iogues, místicos e monges. Era usada para apaziguar os espíritos da natureza, a fúria dos elementos, os infortúnios familiares, para reverenciar e servir os mortos, para obter orientação e conselho, para proteção e muitos outros assuntos. Por tudo isso, sua finalidade não pode ser outra senão a plena compreensão daquilo que é a verdadeira essência da mente.
Mageo e Howard afirmam que:
Quando a mudança altera radicalmente as estruturas formais da sociedade, os deuses tradicionais podem desaparecer ou assumir atributos de espírito, enquanto os espíritos perduram e refletem as qualidades mutáveis da experiência pessoal. (MAGEO; HOWARD, 1996, p. 5)
Desta forma podemos dizer que a prática de Chöd reflete, não só em sua história, mas também em seus componentes a evolução social e cultural de todos os aspectos que a compõem. No toque do damaru que hoje se dedica à prática da meditação com o propósito de obter a liberação dos ciclos samsâricos, está também o toque do antigo eremita para quem os mortos não estavam mortos, e que oferecia seu corpo para o benefício do espírito daqueles que partiram e para sua transcendência.
Notas:
[1] Mahayana significa “grande veículo”. É uma escola do Budismo. A tradição Mahayana enfatiza que qualquer um pode aspirar alcançar o despertar e se tornar um bodhisattva (alguém que deseja atingir o estado de Buda para o benefício de todos os seres sencientes). Os ensinamentos não-Mayahana acreditam que apenas o Buda pode ser chamado de bodhisattva. De acordo com o Mahayana, despertar significa compreender a verdadeira natureza da realidade. Entre os textos mais importantes da tradição Mahayana encontramos o Prajnaparamita Sutra e o Sutra do Lotus.
[2] Vajrayana significa “veículo do diamante” e é uma forma de budismo tântrico. Parece ter florescido entre os séculos VI e XI d.C. Também conhecido como Mantrayana por causa da importância do uso de mantras para impedir que a mente siga a exibição ilusória da realidade dualista. Se considera que é o veículo mais rápido para a iluminação, isto é, perceber a verdadeira natureza da mente.
[3] De acordo com a autora Janet Gyatso, Aryadeva, o brâmane, era o tio de Pa Dampa Sangye e não o famoso filósofo e pensador conhecido como Aryadeva.
[4] Pa Dampa Sangye foi um grande iogue, considerado um mahasiddha (alguém que personificava a grande perfeição). Nasceu na Índia e transmitiu vários ensinamentos no Tibet, aproximadamente no século XI d.C.
[5] Kyoton Sonam Lama foi, de acordo com a autora Judith Simmer-Brown, um iogue errante de grande realização. Ele parece ter vivido no século XII d.C.
[6] Dakini, em tibetano Mkha'gro'ma, no budismo japonês Dakiniten; são espíritos que representam a sabedoria primordial e que têm um papel muito importante no Budismo Tântrico. Existem muitas categorias de dakinis, mas inicialmente podemos distinguir entre a dakini totalmente iluminada e a dakini mundana. Elas são de aparência colérica ou pacífica. Considera-se também que uma mulher de grande conhecimento, que tenha alcançado em sua vida grandes realizações, ou que seja uma inspiração para outros praticantes, pode ser considerada uma dakini.
[7] Tara é uma deusa protetora. Ela foi introduzida no panteão Budista e é adorada como a “grande salvadora” que dissipa todos os medos e limpa os obstáculos no caminho para a iluminação. Ela assumiu vários aspectos e muitas sadhanas (liturgias) louvam o que chamam de “As 21 Taras”.
[8] De acordo com os ensinamentos Budistas, o termo “sofrimento samsárico” refere-se aos ciclos intermináveis de morte e renascimento.
[9] Prajnaparamita significa “perfeição da sabedoria”, mas a palavra também se refere a um determinado corpo de Sutras (ensinamentos ou discurso religioso, que podem ser escritos em estilo de aforismo e podem ser longos ou curtos; fazem parte do corpus doutrinário do Hinduísmo , Budismo, etc). De acordo com o estudioso Edward Conze, os sutras mais antigos são Astasahasrika Prajnaparamita e Vajracchedika Prajnaparamita.
[10] O Tantra Mãe é um composto de vários tantras também chamado de Yogini Tantra. Eles se concentram na ideia de que a mente iluminada pode ser alcançada por meio do cultivo de uma mente pura, e que o desejo também é um caminho para a iluminação. Assim, o praticante tântrico deve cultivar a devoção em sua prática diária. Todas as circunstâncias da vida podem ser transformadas em uma fonte de devoção.
[11] Kali é uma deusa Hindu. Ela personifica o princípio da destruição, mas também da geração. Com o tempo passou a ser concebida como Deusa Mãe, mas nunca perdeu seus atributos anteriores. Ela é adorada por muitos praticantes tântricos.
[12] Os Protetores são espíritos, em sua maioria de aparência colérica, que guardam o praticante durante um ritual ou na vida diária. Entre as crenças tibetanas existem protetores das quatro direções, dos Elementos e todo lugar natural tem um espírito protetor. Todos eles devem ser saudados ou servidos para garantir o bom desempenho de um ritual.
[13] Karma é o princípio de causa e efeito. Significa “ação”. Boas ou más ações determinam a condição existencial da vida de alguém. É um conceito-chave no Hinduísmo, Budismo, Jainismo, entre outros.
Referências:
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